quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Tatiele Novais Silva

A sociedade politizada e o sujeito responsivo mediante meios artísticos de expressão sob a perspectiva bakhtiniana
Tatiele Novais Silva[1]

No ambiente social, somos bombardeados por valores (ideologia) que podemos absorver voluntariamente ou involuntariamente. Constituídos pelos outros, somos influenciados e influenciamos, literal e figurativamente, o ambiente cotidiano, enriquecido pelas relações estéticas, que extrapolam o ambiente vivencial. Segundo Bakhtin,
“Os três campos da cultura - a ciência, a arte e a vida - só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. Mas essa relação pode tornar-se mecânica, externa. Lamentavelmente, é o que acontece com maior freqüência. O artista e o homem estão unificados em um indivíduo de forma ingênua, o mais das vezes mecânica: temporariamente o homem sai da “agitação do dia-a-dia" para a criação como para outro mundo ‘de inspiração, sons doces e orações’. -O que resulta daí? A arte é de uma presunção excessivamente atrevida, é patética demais, pois não lhe cabe responder pela vida que, é claro, não lhe anda no encalço. ‘Sim, mas onde é que nós temos essa arte - diz a vida -, nós temos a prosa do dia-a-dia’.”
(2003, p. 1)

A arte funciona como uma válvula de escape para os conflitos cotidianos e o homem a utiliza como meio de expressão que representa, com acabamento, a realidade social, por isso, lugar de excelência no universo da linguagem, uma vez que reflete e refrata as forças centrípetas e centrífugas que, em embate, povoam seu discurso que, como qualquer discurso, caracteriza-se como “arena onde se digladiam os valores sociais”, segundo Bakhtin/Voloshinov (1997). 
A arte é um discurso responsivo, texto que pressupõe, como toda enunciação, uma compreensão responsiva; e aquilo a que responde é ao mundo da vida vivida, a vivência. Compreender sua significação, o tipo particular de seu engajamento, de sua resposta, de sua responsabilidade, requer uma arquitetônica voltada para a compreensão das relações. As representações do meio social liderado por um determinado sujeito não são apenas precursoras de seus valores, mas também dos valores que o sujeito líder propõe como coerentes à sociedade governante.
O homem, sujeito dialógico, enuncia respostas por meio de seu enunciado artístico, interage com seu meio e aciona forças que compõem novos valores – convergentes ou divergentes aos determinados pela sociedade, coordenada por determinado grupo ou líder.
            Sendo viva, a participação do ato ético ou a ausência dele na criação artística, diferente de inspiração, é o trabalho estético, e este, responsável por retratar determinada ideologia, refletida no outro representado, o que ocasiona embates e tensões e estes, por sua vez, desencadeiamrespostas por parte do “outro”. Por meio dessa concepção dialógica fica possível entender como “ser e parecer” é uma temática dicotômica presente de maneira enfática na arte, seja como denúncia seja como glorificação de ações e relações entre o eu-outro. Assim, pensar sobre como a arte semiotizaa vida e em que medida o signo, tal qual pensado pelo Círculo (como ideológico), “reflete e refrata” valores em seu discurso é o intuito deste artigo.
            Sendo a política um tema expressivo na e da sociedade contemporânea, é propícia uma reflexão sobre como o jogo de aparências (como políticas afirmativas, política ambiental, política ética e suas derivações) é de forma responsiva abordada pelos sujeitos sociais e como tal temática é retratada na arte, a fim de verificar se, no mundo da representação estética, as facetas do homem são desnudadas perante a reflexão acerca dos valores ideológicos formadores da contemporaneidade, como é feita essa representação, quem é representado e o que se representa visto que a arte trata da hipocrisia de maneira metafórica, bem como transforma os sujeitos em atores sociais. Afinal, podemos compreender, por meio da arte, parte da faceta humana, dialógica (via projeção do homem em sujeito enunciado que “reflete e refrata” valores sociais por meio de seus enunciados responsivos).
            A arte envaidecida pelo estético e pela forma, muitas vezes, concebida de maneira mecânica, induz o sujeito ao julgamento de valor que, além de visualizar o sentido e como seelabora a construção do discurso, condiz com o ato responsável para com o objeto de criação. Essa responsabilidade está sempre propícia ao outro dentro de um meio social e de uma sociedade responsiva. Diz Sobral (2005, p.104) que
“cada sujeito deve responder por seus atos, sem que haja uma justificativa a priori, de caráter geral, para seus atos particulares, e, do outro, a ideia de que a entonação avaliativa, ou a assunção de uma dada posição no mundo humano, é a marca específica do agir dos seres humanos. O ato responsível (cf. quanto a este termo “Ato/atividade e evento”, neste livro), ou ato ético, envolve o conteúdo do ato, o processo do ato, e, unindo-os, a valoração/avaliação do agente com respeito a seu próprio ato.”
            A canção como meio artístico vivo na sociedade é uma expressão que pode ser vista como elemento representativo de como a criação estética envolve uma estrutura e uma arquitetura ideológica que, quando em ação, envolve relações que se organizam e se manifestam em estado de tensão dinâmica, favorecendo a composição de sentido pelo outro e, estabelecendo também uma relação com esse outro (que fala e interroga sobre si e seu entorno), identifica as tensões constituintes do meio narrado.
Luciana Melo, na canção “Vaidade” (2007), trata da vaidade humana e, por meio dessa temática, podemos ver o quanto a arte está estritamente relacionada à vida, pois dela nascitura e representação. Na canção citada, o tema implica em diálogos conflituosos, pois revela a relação de domínio e resistência acerca do poder da vaidade sobre o homem, como é perceptível no trecho a seguir:
“Eu duvido que você não queira!
Meu nome é Vaidade!
Quando eu entro na historia
O roteiro é só pra mim...”
(Luciana Melo)

            Esse pequeno excerto já demonstra o quanto a linguagem social, interativa e dinâmica é manifesto dos reflexos das relações do sujeito, com contexto social e para com o “outro”. Ao visar essas relações , a canção trata da consequência da presença dominante de controle e imposição quanto aos valores e moral nos quais o suejito está inserido. Por meio da canção, é possível identificarmos questionamentos e uma superexposição desses valores, camuflados e inseridos ao texto por meio de um trabalho estético (composto por forma, conteúdo e estilo) que cria sentidos por meio dos valores ideológicos que fluem no cotidiano narrado, como nos explica Bakhtin/Voloshinov:
“Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia. Mas, ao mesmo tempo, esses produtos ideológicos constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano;”. (1997, p.119)
O homem como objeto da arte e a arte como representação do homem, na canção, sugere os seguintes questionamentos: Como a arte, especificamente o gênero canção, trata a movimentação das forças que impulsionam o homem – sujeito constituído pelo outro? E como o autor a constrói dando-lhe acabamento estético? E a responsabilidade desse ato de criação numa sociedade politizada e que politiza a arte, qual é?
Arte e vida interagem diferentemente e cada uma a seu modo abre um leque de possibilidades de construção de sentidos. Ou, como diria Bakhtin, “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade.” (2003, p. 1)
O discurso cancioneiro abrange a linguagem viva e se caracteriza como meio de expressão significativo na sociedade, dada a suapopularidade cultural. Ele é um gênero estético porque possui acabamento e responde à sociedade ao ser incorporado no cotidiano e ao induzir uma reflexão ativa no sujeito contemplador de seu discurso, impelindo-o a uma resposta (questionamento e inserção social). Como autor, o sujeito ressignifica e interpreta o mundo a seu modo, ao considerar todo o contexto de criação da canção (sua ideologia). A partir dessa pequena e rápida descrição, temos a clareza da dimensão que esse gênero discursivo alcança no meio social e de sua importância como gênero estético.    
Mediante a reflexão de Bakhtin, torna-se claro para nós que a forma como o homem se expressa ao atingir o outro dentro de uma sociedade politizada implica, além da valoração da forma, na importância da relação existente e impossível de ser dissociada entre vida e arte, o que constrói e faz sentido, uma vez que a criação independe de inspiração e é, sim, reflexo de uma dada sociedade (a retratada em seu discurso estético) e seus valores. Desse ponto de vista, a construção estética é um ato ético responsivo e responsável.  

Bibliografia:
BAKHTIN, M.M. (VOLOSHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
BAKHTIN, M. M. / VOLOSHINOV. “Discurso na vida e discurso na arte”. Tradução de Carlos Alberto Faraco apenas para uso acadêmcio. Mimeo, sem referências.
BAKHTIN, M. “Arte e Responsabilidade”. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GERALDI, J. W. “Sobre A Questão Do Sujeito”. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
MACHADO, I. “A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia”. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
MELO, R. de. “O Discurso Como Reflexo e Refração e Suas Forças Centrífugas E Centrípetas”. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
MELLO, L. “VAIDADE”. Sete Pecados - Nacional. Rio de Janeiro: Som Livre, 2007.
PETRILLI, S. “Uma leitura inclassificável de uma escritura inclassificável: uma abordagem bakhtiniana da literatura”. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
PONZIO, A. “O pensamento dialógico de Bakhtin e de seu Círculo como inclassificável”. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
SOBRAL, A. “Ético e Estético: na vida, na arte e na pesquisa em ciências humanas”. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin – Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2005.


[1] Graduanda de Letras; UNESP – Assis; BAAE; GED; tatiele_ns@hotmail.com

[1] BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4 ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998. 418p. (p. 100)
[1] Região da Numídia, Norte da África: 354-430 (referência do texto original).
[1] Disponível em: http://gegelianos.blogspot.com/2008/01/alteridade-parte-ii.html. Acessado em: 27 de janeiro de 2011
[1] Noção de acabamento, também centrada em Bakhtin, na qual “só um outro pode nos dar acabamento e somente nós poderemos dar acabamento a um outro. Cada um de nós se situa num determinado horizonte e necessita do outro para completar o que falta ao nosso horizonte de visão.” (LOPES, 2005)

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