segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Nátalie Ferreira Carvalho Silva e Luciane de Paula

O RITMO E A POESIA DO HIP HOP BRASILEIRO: voz marginal
Nátalie Ferreira Carvalho Silva[1]
Luciane de Paula[2]

Este artigo pretende adentrar no universo do rap brasileiro contemporâneo visto como expressão discursiva poético-social, mais que isso, uma manifestação política que pretende dar voz aos sujeitos marginalizados pelo sistema. Para isso, calcar-se-á nas concepções filosóficas do Círculo de Bakhtin.
Adepto à revolução, o rap - abreviatura em inglês de Rhythm and Poetry -  constitui parte integrante do movimento[3] hip hop[4] e tem como objetivo expressar a voz de e tratar dos problemas ocorridos com aqueles que se encontram à margem do sistema. Nesse sentido, o movimento surge como indignação à exclusão imposta aos sujeitos e ao universo periférico. Como porta voz dessa indignação, as letras de rap denunciam as condições desumanas e miseráveis em que vivem esses sujeitos e, dessa maneira, tratam da desigualdade social existente no país. O verso de um dos raps dos Racionais MC’s a seguir exemplifica bem a crença na força (o poder) da palavra como instrumento revolucionário: “Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição” (Racionais Mc´s, Capítulo 4, versículo 3).
O rap traz, de forma representativa, a realidade sócio-cultural brasileira em suas canções, que transmitem conhecimento mais amplo do Brasil, ao narrarem, por exemplo, a questão social do negro e a ideologia inspirada na auto-valorização de suas origens africanas, que negam a violência e a marginalidade. Nesse sentido, o rap alia-se aos sujeitos periféricos ao dar voz a eles e ao universo por eles vivido (preconceito e discriminação, violência e miséria) numa atitude responsiva e responsável de denúncia. Quer ato político mais legítimo? De certa forma, o rap cria, em seu e por meio de seu discurso, uma “arena onde se digladiam as vozes sociais” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992).
A linguagem de suas letras é intencionalmente marcada por traços do cotidiano,  da oralidade, com direito ao uso abundante de gírias e palavrões, o que causa efeito de sentido chocante, irônico e Ácido, mostrando, com isso, o universo das camadas suburbanas. Em relação a esse efeito espantoso que as expressões verbais causam, num outro contexto e acerca de outra questão, Bakhtin diz que “Na realidade não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1997: 95).
No caso do rap, a linguagem causa esse choque por ilustrar, literalmente, o jeito de ser daquele grupo e de sua realidade social. Com isso, as suas letras conseguem denunciar a sociedade de maneira aprofundada ao mostrar o cotidiano de toda a comunidade marginalizada, com vistas a mencionar a sobrevivência dos sujeitos nas condições subumanas em que vivem. Como, na atualidade, o rap transita por diversas esferas de atividades distintas no dia-dia, ele consegue abarcar um número grande de ouvintes e levar a voz da periferia a lugares distantes antes insuspeitos: as casas das classes média e alta.
Suas letras assumem e estimulam a resistência popular e a melodia, composta por batidas regulares e percussivas, simula a passionalidade, marcada por um compasso militar mesclado, harmonicamente, pela presença variante do rock que não “canta”, grita, com o som estridente da guitarra, as mazelas da periferia. Em geral, as canções se caracterizam como raivosas e demonstram gritos de revolta e dor, pedidos de socorro e propostas sugeridas para melhores condições de vida. Nesse sentido percebe-se que apesar de rappers alguns fazerem parte do mundo marginalizado e outros, não, todos falam sobre exclusão e possuem consciência, não só em relação à classe a que pertencem e sobre a qual cantam, mas também acerca da importância da palavra, da linguagem, como arma política de denúncia, resistência e revolução, e, por isso, usam o discurso como  instrumento de possível ruptura das amarras que o poder sócio-político-econômico-cultural lhes impõem.
A narrativa explicitada na letra das canções, no entanto, claramente, não tem origem em um só locutor, em uma só personagem da trama montada pelo texto. Várias são as vozes em diálogo constante no discurso, como nos ensina Bakhtin e com o rap não é diferente, ainda se se considerar que a sua composição se caracteriza como um discurso coletivo; discurso este em diálogo com outros  enunciados e sujeitos, como concebe Bakhtin ao tratar do dialogismo como concepção filosófica nodal dos estudos do Círculo, visto como parte intrínseca da constitutiva da linguagem, logo, presente em qualquer atividade humana concreta, pois o “falante não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados [...]”(BAKHTIN, 2003, p. 300). No caso do rap, muitas vezes ele é concebido da maneira coletiva, nos desafios e improvisos típicos dos bailes promovidos pelo hip hop e nas apresentações dos rappers, que também misturam suas vozes uns aos outros, o que rompe com a lei burguesa de autoria.
No projeto de Iniciação Científica em elaboração, foram selecionadas nove canções como corpus da pesquisa, que já se encontra em andamento, sendo três rappers distintos, três canções de cada um. O intuito é exatamente mostrar a intergenericidade do gênero canção e dos discursos  do rap. A escolha do estilo musical ocorreu pela preocupação acerca do papel político-sócio-cultural desse gênero discursivo, que dialoga tão “diretamente” com a comunidade cantada. Para isso, parte-se da metodologia filosófica (dialético-dialógica) do Círculo de Bakhtin, calcada em três etapas: a descrição do objeto; a análise discursiva do corpus; e a interpretação propriamente dita, que busca identificar, dadas a esfera, a materialidade e os recursos discursivos e textuais do objeto pesquisado, que efeitos de sentido são nele criados por meio das construções das vozes dos sujeitos e sua relação com os valores sociais do universo periférico[5].
Acredita-se que as produções dos Racionais MC’s, do Gabriel o pensador e do Rappin Hood mantêm o intuito ideal original do hip hop, uma vez tiram a periferia dessa condição de exclusão ao dar voz ao universo da favela e seus sujeitos.
Sobre a questão da invisibilidade e da conquista de um certo espaço que permita visibilidade, Herschmann (2006) diz que a mídia produz “frestas”, espaços fundamentais para a percepção das diferenças, nas quais o “outro” emerge como sujeito. Na medida em que a mídia dá visibilidade aos grupos urbanos marginalizados, permite que tais grupos denunciem a condição de “proscritos” e reivindiquem cidadania e isso é o que tem ocorrido com o rap, nos casos dos compositores citados.
As canções escolhidas como corpus do projeto em elaboração são: “Mágico de Oz”, “Diário de um Detento” e “O homem na estrada”, dos Racionais MC’s; “Pátria que me pariu”, “O resto do mundo” e “Até quando”, de Gabriel o pensador; e “Favela”, “Sou negrão” e “Rap du bom parte 2”, do Rappin Hood. Essas canções  possibilitam ver a proposta por e a característica de cada autor:

. os Racionais MC´s trazem à tona a fúria como desejo de denúncia acerca das desigualdades sociais. Suas letras se centram na discriminação, injustiça e abandono voltados aos sujeitos periféricos, vistos como marginais marginalizados pela sociedade. As canções demonstram o círculo vicioso que se torna a vida dos sujeitos que vivem nas periferias e como a sociedade não lhes dá espaço para que saiam da vida criminal. Suas canções possuem um discurso mais forte, mais politizado, com tom de briga e conscientização social, bastante próximo do discurso do punk;
. o Gabriel, tanto quanto os Racionais, desvela as desigualdades sociais, mas, num outro tom. Suas canções se voltam aos sujeitos excluídos como palavra de incentivo à resistência, uma vez que os “eus” de suas canções (incluídos ou não) dizem aos “outros” (excluídos) para não se acomodarem em suas posições, para lutarem contra os preconceitos e discriminações e mudarem a situação social em que se encontram – com isso, indireta e utopicamente, transformarem a sociedade;
. o Rappin Hood também trata do protesto, como os demais,  mas, diferentemente, suas canções se constituem, principalmente, como um pedido de paz entre as vozes e os grupos sociais em embate. As letras enfatizam as qualidades dos sujeitos marginais e também a periferia como um todo. Às vezes, bastante utópicas, as canções preferem acreditar na igualdade sem revolução, pois priorizam os direitos de todos, clamados para o “agora”, sem guerra, já que todos são/somos seres humanos.

Para Bakhtin, o embate ideológico localiza-se no centro vivo do discurso, seja na forma de um texto artístico, seja como intercâmbio cotidiano da linguagem. O embate ao qual se refere o filósofo russo ocorre por meio da relação eu-outro (sujeito-sujeito, sujeito-enunciado, enunciado-enunciado).
Segundo Paula e Paula (2011, no prelo), embora alijados das possibilidades que o sistema social oferece, os sujeitos excluídos se organizam e sobrevivem de maneira peculiar na sociedade. Apesar de segregados das melhores condições de vida (educação, saúde, habitação etc.), criam e recriam seus espaços sociais e seus referenciais culturais como expressão de suas vidas, seus valores, seu modo de compreender e viver o mundo. Nessa direção, os espaços sociais periféricos constroem suas formas de vida e expressões culturais a seu tempo, daqueles lugares.
Os temas do rap  fazem alto apelo às questões políticas, o que  relativiza “verdades” ao colocar em discussão temas como miséria, fome e situação marginal. As letras das canções também demonstram o resultado da aglomeração descontrolada de pessoas na zona rural, obrigadas a se recolherem nos guetos das cidades, como é o caso de “O Homem na Estrada” (Disco 2- 1993), de Mano Brown:
“Equilibrado num barraco incômodo,
Mal acabado e sujo [...]
Um cheiro horrível de esgoto no quintal,
Por cima ou por baixo,
Se chover será fatal.
Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou.
Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou.”.

De forma ilustrativa, a canção narra a situação precária do local onde o eu–lírico vive, dando a noção do perigo de seu abrigo ao falar “equilibrado”, passando a idéia que pode vir a desmoronar, mas as letras do rap também mostram a busca da identidade realizada pelos sujeitos marginalizados e enfocam as críticas que recaem sobre o autoritarismo dos “Aparelhos Ideológicos do Estado” (Althusser), em especial, a polícia, sobre os denominados sujeitos excluídos[6], como ocorre em “Até Quando” (2001), de Gabriel o pensador:
“A polícia
Matou o estudante
Falou que era bandido
Chamou de traficante!
A justiça
Prendeu o pé-rapado
Soltou o deputado
E absolveu os PMs de Vigário!
A polícia só existe pra manter você na lei
Lei do silêncio, lei do mais fraco”.

A letra toda referente ao excerto acima mencionado é criticamente política, pois narra os flagrantes das injustiças e corrupções cometidas na sociedade por seus diversos setores, inclusive pelos representantes do Governo brasileiro.
Para Bakhtin (1999, p. 113) “(...) toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra, apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.
Essa ponte sugerida de locutor e ouvinte leva à reflexão sobre os problemas sociais, vistos como problemas políticos, uma vez que toda postura é uma posição política. Em outras palavras, o rap faz um elo entre toda a sociedade que ainda “Vira a cara pra não ver” (Gabriel o Pensador, “Até quando”, 2001) como se estrutura. Assim, pode-se pensar no rap como expressão cancioneira do hip hop que retrata um universo de mediações que fogem da lógica cartesiana e compõe-se de conflitos e contradições características de sua história, de seu discurso, de sua condição objetiva que, ao mesmo tempo, encontra-se segregada e gerando lucro, marginalizada e presente na mídia. Um discurso de dominado à dominante e de dominado e dominante. Discurso político com acabamento estético que dá voz e visibilidade aos sujeitos e espaços segregados com ritmo e poesia próprios, seu ritmo e sua poesia: o rap do hip hop.

BIBLIOGRAFIA:
BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV). (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
HERSCHMANN, M. O funk e o hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
HOOD, R. “Favela”. Composição: Exaltasamba, Racionais MC e Rappin Hood. (Sem referências).
___. “Sou negrão”. Sujeito Homem. Rio de Janeiro: Trama, 2001.
___. “Rap du bom parte 2”. Sujeito Homem 2. Rio de Janeiro: Trama, 2005.
PAULA, L. de. O SLA Funk de Fernanda Abreu. Tese. Araraquara: UNESP, 2007. Disponível em http://portal.fclar.unesp.br/poslinpor/teses/luciane_de_paula.pdf
PAULA, L. de; PAULA, S. L. de. “No centro da periferia, a periferia no centro”. Ipótese. Vol. 15, no. 2. Juiz de Fora – MG: UFJF, 2011 (no prelo).
PENSADOR, G. O. “Pátria me pariu”. Quebra-Cabeça. Rio de Janeiro: EMI, 1998.
___. “O resto do mundo”. Gabriel o Pensador. Rio de Janeiro: EMI, 1997.
___. “Até Quando”. Seja você mesmo (Mas não seja sempre o mesmo). Rio de Janeiro: EMI, 2001.
RACIONAIS MC’s. “Mágico de Oz”. Sobrevivendo no Inferno. 1997.
___. “Diário de um Detento”. Sobrevivendo no Inferno. 1997.
___. “O Homem na Estrada”. Raio-x Brasil (Disco 2). 1993.


[1] Graduanda do curso de Letras da UNESP – Câmpus de Assis; BAAE; GED; naty-s22010@bol.com.br
[2] Professora de Linguística da UNESP – Câmpus de Assis; GED; lucianedepaula1@gmail.com 
[3] Segundo Paula (2007, p. 19), quando fala-se sobre o “movimento” hip hop, refere-se à idéia dinâmica de movimentação de determinadas coletividades em torno de uma proposta estético-social e não propriamente à idéia clássica de movimento, ligada ao engajamento político-partidário. Aqui, o hip hop é visto como uma grande movimentação coletiva atuante no espaço social e no campo cultural, o que, de certa forma, não deixa de ser uma maneira de engajamento político, mas não partidário. Apesar dos integrantes do hip hop se auto-intitularem pertencentes a um movimento, crê-se que a movimentação em torno do ritmo e seus corolários – aquilo que os faz se moverem em direção a algo – seja mais palpável de se aferir do que uma possível natureza de um movimento, ainda que haja ações sociais sempre vinculadas ao hip hop, bem como a tentativa de organização institucionalizada dessas ações (o que ocorre, por exemplo, na CUFA – Central Única das Favelas, no Rio Janeiro, que nasceu com esse intuito).
[4] De acordo com Paula (2007, p. 19), “O movimento hip (quadris) hop (pulo) surge com o propósito de dar voz aos sujeitos excluídos, tanto dos Estados Unidos quanto do Brasil, nos anos 60/70, e é composto por canção (rap e funk), dança (break), pintura (grafite) e poesia (as letras das canções, assim chamadas pelos sujeitos do movimento)”.
[5] Conforme Paula e Paula (2011, no prelo), “Entendemos periferia não como espaço geográfico localizado às margens das cidades, mas como espaço invisível aos olhos da sociedade que, muitas vezes, despreza-o, na tentativa de apagamento dos sujeitos e de suas produções culturais marginalizadas, não porque encontradas à margem geográfica do sistema, mas porque colocadas de lado pela produção calcada no dinheiro, que volta sua atenção e seus olhos para os sujeitos e as produções da alta sociedade, sendo, esses, colocados em local central de visibilidade e importância sociais. Por isso, ao pensarmos na temática da periferia, inevitavelmente, somos levados a pensar a relação tempo e espaço sociais, suas relações com a cultura e as diversidades sociais, culturais, linguísticas, entre tantas.”. Afinal, segundo as autoras, “(...) uma manifestação artístico-cultural determinada pode ocupar um espaço geográfico central, como alguns morros no Rio de Janeiro, mas não necessariamente ser consumida por um público de classe social privilegiada ou ‘central’, como ocorre, no início, com o rap e com o funk (com o samba também foi assim). Quando esse outro grupo economicamente privilegiado passa a consumir e produzir rap e funk é que a indústria fonográfica começa a valorizar esses ritmos musicais e a apostar neles ‘todas as suas fichas’. Nesse momento, a indústria fonográfica contrata e espalha DJs, rappers e funkeiros pelas emissoras de TV, rádios, festas e bailes.”.
[6] Na letra da canção “O Resto do Mundo” (1997), de Gabriel o pensador, o próprio sujeito se auto-denomina “excluído” de maneira crítica/irônica: “Eu me chamo de excluído como alguém me chamou”.

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